domingo, 1 de junho de 2008

Consumo cidadão (entrevista com Padre Júlio Lancelotti)


CONSUMO CIDADÃOO

Natal é a época fértil do consumismo. Para o pedagogo e responsável pela Casa Vida, a resposta para combater esse hábito cultural pode estar na cidadania.
"É preciso contrabalançar consumo e cidadania"
O Padre Júlio Lancellotti é um exemplo de compromisso social. Além de desenvolver trabalhos ligados a questões emergenciais como o da Casa Vida, entidade que já tem dez anos e abriga, atualmente, 34 crianças e jovens com vírus HIV, ele também é um dos grandes incentivadores de políticas públicas no cenário nacional.
Formado em pedagogia, o padre Júlio responde, ainda, pela coordenação do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente da Pastoral do Menor, em São Paulo, instituição voltada ao público infanto-juvenil em situação de rua.
Em entrevista à Consumidor S.A., ele aponta as causas e as conseqüências do consumismo desenfreado e como essa realidade pode ser mudada, a partir da conscientização e da busca por um consumo mais responsável.
Consumidor S.A.– A mensagem do Natal foi distorcida em todo o mundo. Nesta época, as pessoas apenas se preocupam em consumir. O que provocou isso?Padre Júlio Lancellotti– Para entender o motivo, talvez seja necessário rever a origem do ato de se presentear e, depois, como isso foi deturpado. O Natal pode ser visto como um presente de Deus para a humanidade. Também se trabalhou muito o significado do presente que os três reis magos levaram ao menino Jesus, o que, na verdade, é mais uma descrição teológica do que material. Em alguns países, sobretudo na Europa, as pessoas se presenteiam no Dia de Reis e não no Natal, por exemplo. Mas o fator determinante partiu de uma necessidade do mercado de encontrar datas onde o estoque de produtos possa ser escoado. É uma tendência quase de sobrevivência do consumo e até da própria sociedade. Se o consumo não for gerado, a produção tende a cair enquanto o desemprego corre o risco de aumentar. Acho importante enfatizar, contudo, que isso não acontece por maldade (das pessoas) e sim por culpa do sistema.
Consumidor S.A.– As pessoas não são responsáveis também?Padre Júlio– Eu não jogaria a culpa nos consumidores. Afinal, todos são massacrados no Natal. É comum o pensamento: “como vou ser um bom pai, uma boa mãe, se eu não der presentes para os meus filhos neste Natal”? O complicado é combater isso, pois gera um conflito tremendo.
Consumidor S.A.– Como é possível mudar esse quadro?Padre Júlio– Acredito que a saída é a educação. A sociedade organizada pode contribuir, ajudando na conscientização e na capacitação da população, a fim de que todos adquiram uma atitude mais crítica de consumo, mais responsável, mais solidária. Já a melhor maneira de ensinar é pela cidadania. Isso acontece quando você batalha para que as pessoas tenham seus direitos respeitados, condições de vida dignas e políticas públicas. Assim, estaremos trabalhando contra esse mercado de consumo, que acaba sendo seletivo, desigual, cultural e frustrador. Estaremos lutando contra essa cultura que passou a ser o coração das relações humanas. Não deixa de ser um trabalho difícil, principalmente por causa da mídia.
Consumidor S.A.– E a propaganda, qual o seu papel na indução ao consumo?Padre Júlio– Os mundos de mercado e da propaganda são grandes incentivadores do consumo desenfreado. Mas o mais cruel é que o marketing é democrático. O apelo ao consumo atinge a todos, sejam pobres ou ricos. As grifes não fazem propagandas diferenciadas. Isso gera a frustração, que é a mãe da violência.
Consumidor S.A.– Este é o caso da maioria dos jovens internos na Fundação do Bem Estar do Menor (Febem)? Uma estatística da entidade mostrou que 62% dos jovens infratores entram na Febem por roubo, isto é, por causa do consumismoPadre Júlio– Sim, o índice de furto na instituição é bastante alto. Os jovens roubam para manter a questão da dependência química, mas também para comprar um tênis ou uma roupa de marca. Para ter alguma identidade, ou se encaixarem em determinado meio social, muitas vezes são obrigados a comprar não o produto, mas sua grife. Isso é terrível porque cria uma massificação que, numa data como o Natal, acaba significando a época de ter algumas coisas, de comprar. Não é mais a época de encontro entre as pessoas, de celebração da vida que se renova. As pessoas apenas se preocupam com o que vão vestir, o que vão comer...
Consumidor S.A.– Como o consumidor pode ter uma atitude de consumo responsável, seja no Natal ou em qualquer outra época do ano?Padre Júlio– Para qualquer momento, as pessoas só devem consumir aquilo que é necessário. Hoje, já existem outras dicas: não consumir produtos que explorem, em sua cadeia de produção, o trabalho infantil. Para isso, o consumidor pode verificar se o produto tem o selo da Abrinq “Empresa Amiga da Criança”. Além disso, ele pode optar pelos produtos ecológicos que visam a preservação do meio-ambiente. Na verdade, antes de sermos consumidores, devemos nos observar como pessoas. Geralmente, comprar compulsivamente pode ser uma maneira de encobertar uma espécie de frustração, de resolver problemas emocionais. Mas não adianta tentar melhorar a auto-estima comprando, o único jeito é buscar nossas necessidades básicas de afeto, de amor, de respeito e de dignidade. Mas o principal é contrabalançar consumo com cidadania.
Consumidor S.A.– Como o sr. aconselharia um pai que deseja educar seu filho para um consumo responsável?Padre Júlio– Na missa ou no batismo, eu sempre enfatizo a questão da partilha para a solidariedade, usando a metáfora do pão repartido. Eu costumo dizer às crianças: “o pão repartido tem gosto de amor”. Também acho que os pais não podem dar tudo o que seus filhos quiserem, mas tudo a que eles têm direito, isto é, serem amados e respeitados. Os filhos não podem ser um saco de consumo, onde você vai jogando tudo lá dentro. É claro que não há como educar sem confronto, sem crise. Ainda mais porque a mentalidade consumista vem junto com a nossa certidão de nascimento.

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